sexta-feira, junho 02, 2006

Sátira à religião. A blogosfera...

Ninguém duvida de que nos próximos tempos lá tenhamos de passar por mais um enjôo, agora agravado pelos clamores de que a Cristandade, a "nossa" civilização, está em perigo, derivado a publicação do "Código Da Vinci" ( e sua recente apresentação nas salas de cinema).
Como é normal, tal assunto já tem sido discutido, mesmo por membros da igreja, com uma linguagem agressiva e escabrosa, outros apenas porque consideram que não se deve brincar com as crenças dos outros. É principamente a esses que me dirijo. Acho que vale a pena entender o que se passa aqui.
1. Não se deve brincar com as crenças dos outros? Eu acho que deve. A blogosfera, aliás, tem sido um meio poderoso de brincar com as crenças dos outros. Os blogues de direita escarnecem dos alternativos, dos pseudo-intelectuais e dos comunas. Os blogues de esquerda atacam os reaccionários, os belicistas e os homofóbicos. Nem sempre estes ataques são muito justos. Sendo eu anti-comunista, reconheço que culpar os velhinhos da Festa do "Avante!" pelos assassinatos em massa de Estaline é um pouco oblíquo. Mas a analogia também tem alguma razão de ser, e isso é o suficiente para que muita gente a utilize.
Zombar do cristianismo é que, por alguma razão, deixa as pessoas desconfortáveis. A "fé" é suposta ser coisa de um nível diferente. E talvez até o seja. Mas não se esqueçam que a "fé" só é distinta para quem a tem. Para mim que a não tenho, é uma crença igual às outras – apenas mais divertida e menos explorada em termos humorísticos. De resto, conheci comunistas que tinham uma veneração igualmente irracional pela URSS, o que nunca deteve ninguém de gozar com eles, bem pelo contrário.
2. Perguntam-me depois porque não faço piadas com muçulmanos, negros ou homossexuais. Na verdade, já fiz piadas com muçulmanos, pelo que esta não conta. Por sinal a reacção até foi muito semelhante: não toques na fé dos outros, etc. Em relação a homossexuais não faço piadas por razões que têm muito pouco a ver com o chamado "politicamente correcto". Não faço porque não estou disposto a contribuir para um preconceito que me indigna e enoja, e que campeia livremente na nossa sociedade.
Além disto, esta é uma comparação tão descabida que chega a ser patética. Onde está o último cristão a quem foi recusado o aluguer de uma casa no momento em que o viram de crucifixo ao pescoço? E quando foi a última vez que um católico foi expulso de casa dos pais ou do trabalho quando se descobriu que ele gostava de ir à missa aos domingos?
3. Sejamos sérios. Os cristãos não são em Portugal uma minoria ameaçada. Gozar com eles não é, como nos casos anteriores, um acto de cobardia. Gozar com o cristianismo pode custar caro. Custou um dos poucos assomos de censura na televisão do pós-25 de Abril (o célebre caso da "Última Ceia" de Herman José). E custa a lei não-escrita nas redacções, produtoras e televisões de que, com a religião, não se pode brincar. Tudo o resto, contudo, já é campo livre e explorado até da forma mais imbecil, repetitiva e mesquinha. Uma sitcom recente de Nicolau Breyner era inteiramente estruturada à volta do retrato grotesco de uma empregada negra. Os alentejanos são gozados todos os dias em horário nobre.
Poderíamos ficar aqui horas a dar exemplos. Em Portugal, quase toda a gente diz sem problemas: "és mesmo judeu" ou "és mesmo cigano", nos sentidos de cruel e ladrão ou mentiroso, respectivamente. O brasão de Évora ostenta as cabeças de um casal mouro, acabadas de cortar por um cristão.
Já se alguém o nota, cuidado!, trata-se de um chato e um hiper-politicamente correcto.
4. Finalmente, diz-se que não se deve brincar com a igreja por uma questão de respeito para com os outros. Falemos então do respeito para com os outros. A Igreja em Portugal, na minha opinião, tem de o praticar bastante mais. Hoje em dia, o proselitismo religioso extravazou o espaço já de si generosíssimo que a lei lhe deu sem mais exigências. Nos media encontramos religiosos de todas as estirpes a fazerem a sua doutrinação. A Igreja Católica tem uma Universidade, paga também com dinheiro do Estado, e onde a liberdade de expressão não é a norma. Lobbies como a Opus Dei ou os Legionários de Cristo têm mais poder neste país (presidentes de bancos, ministros, até a segunda figura do estado) do que qualquer outro dos famigerados lobbies que preocupam tanta gente. Quando as inaugurações de edifícios públicos têm sempre de contar com a benzedura de um bispo; quando um jovem ateu ou agnóstico tem de ver símbolos religiosos em quase todas as escolas públicas; quando os religiosos acham que nada disto faz mal (mas faz sim; pelo menos aos dez por cento de não-católicos que são tão cidadãos como os outros), quem é afinal desrespeitado neste país?
6. As ideias das mais sérias às mais tontas, as instituições em geral e os estilos de vida todos pagam desde sempre a sua taxa à irrisão. Eis porque acho, recapitulando, que a religião não pode estar isenta desse preço:
a) a fé não é uma crença diferente de outras;
b) os cristãos não são uma minoria ameaçada;
c) os católicos estão, de diversas formas, nos centros do poder. E mais ainda:
d) a Igreja gosta de fazer de conta de que nada disto é verdade;
e) quando se toca nestes assuntos há logo gente que fica pior do que estragada.
Poder, dissimulação e empertigamento; terão algumas vez existido melhores condições para o humor?
Das duas uma. Ou se proíbe a sátira, o que sucedeu em Portugal de 1768 a 1794, com fracos resultados. Ou, caso contrário, a sátira vale para todos sem excepção. Falo de sátira mesmo, não de piadinhas simpáticas. Sátira dura, às vezes injusta, sempre higiénica. Não precisa de que toda a gente goste dela – o que é, aliás, a negação do humor.Uma posta de anteontem, publicada pelo Daniel, visava satiricamente a exteriorização ostensiva do martírio que nos últimos tempos tem (também) infectado o Ocidente. O emblema perfeito deste vitimismo é, claro, o filme de Mel Gibson. Mas, a bem dizer, ninguém duvida de que nos próximos dias lá tenhamos de passar por mais um enjôo do mesmo género, e agora agravado pelos clamores de que a Cristandade, a "nossa" civilização, está em perigo. Como é habitual, a caixa de comentários foi inundada por gente que se declarava ofendida, alguns deles com uma linguagem agressiva e escabrosa, outros apenas porque consideram que não se deve brincar com as crenças dos outros. É principamente a estes que me dirijo. Acho que vale a pena entender o que se passa aqui.
1. Não se deve brincar com as crenças dos outros? Eu acho que deve. A blogosfera, aliás, tem sido um meio poderoso de brincar com as crenças dos outros. Os blogues de direita escarnecem dos alternativos, dos pseudo-intelectuais e dos comunas. Os blogues de esquerda atacam os reaccionários, os belicistas e os homofóbicos. Nem sempre estes ataques são muito justos. Sendo eu anti-comunista, reconheço que culpar os velhinhos da Festa do "Avante!" pelos assassinatos em massa de Estaline é um pouco oblíquo. Mas a analogia também tem alguma razão de ser, e isso é o suficiente para que muita gente a utilize.
Zombar do cristianismo é que, por alguma razão, deixa as pessoas desconfortáveis. A "fé" é suposta ser coisa de um nível diferente. E talvez até o seja. Mas não se esqueçam que a "fé" só é distinta para quem a tem. Para mim que a não tenho, é uma crença igual às outras – apenas mais divertida e menos explorada em termos humorísticos. De resto, conheci comunistas que tinham uma veneração igualmente irracional pela URSS, o que nunca deteve ninguém de gozar com eles, bem pelo contrário.
2. Perguntam-me depois porque não faço aqui no blogue piadas com muçulmanos, negros ou homossexuais. Na verdade, já fiz piadas com muçulmanos, pelo que esta não conta. Por sinal a reacção até foi muito semelhante: não toques na fé dos outros, etc. Em relação a negros e homossexuais não faço piadas por razões que têm muito pouco a ver com o chamado "politicamente correcto". Não faço porque não estou disposto a contribuir para um preconceito que me indigna e enoja, e que campeia livremente na nossa sociedade.
Além disto, esta é uma comparação tão descabida que chega a ser patética. Onde está o último cristão a quem foi recusado o aluguer de uma casa no momento em que o viram de crucifixo ao pescoço? E quando foi a última vez que um católico foi expulso de casa dos pais ou do trabalho quando se descobriu que ele gostava de ir à missa aos domingos?
3. Sejamos sérios. Os cristãos não são em Portugal uma minoria ameaçada. Gozar com eles não é, como nos casos anteriores, um acto de cobardia. Gozar com o cristianismo pode custar caro. Custou um dos poucos assomos de censura na televisão do pós-25 de Abril (o célebre caso da "Última Ceia" de Herman José). E custa a lei não-escrita nas redacções, produtoras e televisões de que, com a religião, não se pode brincar. Tudo o resto, contudo, já é campo livre e explorado até da forma mais imbecil, repetitiva e mesquinha. Uma sitcom recente de Nicolau Breyner era inteiramente estruturada à volta do retrato grotesco de uma empregada negra. Os alentejanos são gozados todos os dias em horário nobre. (Devo dizer que isso não me chateia nada, mas quem julga que se trata de uma brincadeira inocente desengane-se: os meus alunos alentejanos, quando se apresentam no primeiro dia de aulas, provocam de imediato risos na restante turma.)
Poderíamos ficar aqui horas a dar exemplos. Em Portugal, quase toda a gente diz sem problemas: "és mesmo judeu" ou "és mesmo cigano", nos sentidos de cruel e ladrão ou mentiroso, respectivamente. O brasão de Évora ostenta as cabeças de um casal mouro, acabadas de cortar por um cristão.
Já se alguém o nota, cuidado!, trata-se de um chato e um hiper-politicamente correcto.
4. Finalmente, diz-se que não se deve brincar com a igreja por uma questão de respeito para com os outros. Falemos então do respeito para com os outros. A Igreja em Portugal, na minha opinião, tem de o praticar bastante mais. Hoje em dia, o proselitismo religioso extravazou o espaço já de si generosíssimo que a lei lhe deu sem mais exigências. Nos media encontramos religiosos de todas as estirpes a fazerem a sua doutrinação. A Igreja Católica tem uma Universidade, paga também com dinheiro do Estado, e onde a liberdade de expressão não é a norma. Lobbies como a Opus Dei ou os Legionários de Cristo têm mais poder neste país (presidentes de bancos, ministros, até a segunda figura do estado) do que qualquer outro dos famigerados lobbies que preocupam tanta gente. Quando as inaugurações de edifícios públicos têm sempre de contar com a benzedura de um bispo; quando um jovem ateu ou agnóstico tem de ver símbolos religiosos em quase todas as escolas públicas; quando os religiosos acham que nada disto faz mal (mas faz sim; pelo menos aos dez por cento de não-católicos que são tão cidadãos como os outros), quem é afinal desrespeitado neste país?
6. As ideias das mais sérias às mais tontas, as instituições em geral e os estilos de vida todos pagam desde sempre a sua taxa à irrisão. Eis porque acho, recapitulando, que a religião não pode estar isenta desse preço: a) a fé não é uma crença diferente de outras; b) os cristãos não são uma minoria ameaçada; c) os católicos estão, de diversas formas, nos centros do poder. E mais ainda: d) a Igreja gosta de fazer de conta de que nada disto é verdade; e) quando se toca nestes assuntos há logo gente que fica pior do que estragada. Poder, dissimulação e empertigamento; terão algumas vez existido melhores condições para o humor?
Das duas uma. Ou se proíbe a sátira, o que sucedeu em Portugal de 1768 a 1794, com fracos resultados. Ou, caso contrário, a sátira vale para todos sem excepção. Falo de sátira mesmo, não de piadinhas simpáticas. Sátira dura, às vezes injusta, sempre higiénica. Não precisa de que toda a gente goste dela – o que é, aliás, a negação do humor. Vejam os Monty Python e "A Vida de Brian", de que todos parecem tão desportivamente gostar hoje em dia. A Vida de Brian é excelente, e é de 1979!


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