terça-feira, fevereiro 14, 2006

Doenças raras

Estou a sentir-me sujo, o mais desprezível dos seres humanos. Descobri que sou um racista. Mas antes de me rotularem, explico que o meu preconceito racial não tem nada a ver com origem ou cor da pele. Trata-se de algo que, no fundo, acaba resgatando mais explicitamente o sentido desta palavra. Vou relatar-vos um episódio que me fez abrir os olhos e diagnosticar esta vergonhosa faceta da minha personalidade:

Recentemente fui abordado por um grande amigo, cuja felicidade no rosto deixava claro que trazia boas notícias. Ele contou-me que uma cadela dele tinha acabado de parir: Nove crias. Preocupado com tantas bocas para alimentar num futuro próximo e sabendo que sou um indivíduo que aprecia a companhia canina, ele logo tratou de me oferecer um. Imediatamente manifestei meu interesse, mas para confirmar fiz uma pergunta essencial: “Anda cá, mas qual das tuas cadelas pariu? A labradora ou a rafeira?”

O preconceito racial escondia-se justamente aí, nesta pergunta aparentemente inocente. Eu tinha uma clara preferência pelos filhos do labrador. Já os da pobre rafeira não me interessavam. Dei-me conta de que estava diminuindo a raça mestiça em prol de uma raça pura.

Passei a relembrar outros pontos de meu comportamento e vi que as raízes do problema eram muito mais profundas. Notei que tenho também um imenso preconceito racial com pit-bulls e similares. Quando vejo um a caminhar na minha direção, fico logo apreensivo, protejo discretamente as minhas “jóias da família” e, quando posso, passo para o outro lado do passeio. Tudo baseado em histórias que ouço falar, mas nunca as vivi. Ele pode ser até um bom pit-bull, trabalhador, pai de família... mas meu preconceito faz com que aquele ser diferente do padrão a que estou acostumado a conviver seja considerado uma ameaça. Para falar a verdade, a única vez que fui mordido na vida, foi por um cão extremamente pacífico, que por alguma razão teve um rápido reflexo de me abocanhar as fuças e quase me deixar cego.

Outro sintoma grave é o pensamento que tenho em relação aos caniches e outros “cachorros de senhora”. Posso até respeitar a opção deles, mas no fundo não considero o comportamento deles, exageradamente delicado, algo natural. Sei lá... Acho que Deus criou os cães para serem cães. Se Ele quisesse algo fofo, limpo e ajeitado, te-los-ia feito nascerem gatos. Já me dei conta a tentar ensinar um yorkshire a ser mais agressivo, achando que aquele comportamento “anormal” dele teria cura... Vejam só, que vergonha! Eu, que até então me considerava um indivíduo respeitador da diversidade, achando que a delicadeza de algumas raças caninas tinha cura, como se fosse alguma espécie de doença.

Mas de hoje em diante lutarei para ser um novo homem. Preciso rever meus conceitos e ampliar a minha tolerância racial. Acho até que vou adoptar um pobre rafeiro que o meu amigo me ofereceu. Também pretendo iniciar uma campanha para a promoção da igualdade canina, com ideias revolucionárias como a abolição do tal pedigree, um documento infame que fomenta este regime de Apartheid canino que presenciamos em silêncio. Que a mensagem se espalhe e logo todos se consciencializem que o importante não é o tamanho, cor ou tipo de pêlo do cão, mas sim o que ele carrega dentro de si.
idades, achando que a delicadeza de algumas raças caninas tinha cura, como se fosse alguma espécie de doença.